A inconstitucionalidade do projeto de lei que torna crime “acusar alguém, falsamente, por qualquer meio, de ser nazista.(1)
Por: Angela Cristina Pelicioli
O projeto de lei nº 254/2022, da deputada Bia Kicis e outros, que torna crime “acusar alguém, falsamente, por qualquer meio, de ser nazista”, pena de reclusão de dois a cinco anos e multa, com parecer pela sua aprovação, está pautado para ser discutido e votado em sessão na Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara dos Deputados. Segundo o projeto, a previsão será incluída no § 1º-A, do art. 20, da lei nº 7.716/89 (lei que trata do crime de racismo).(2)
O referido projeto de lei é inconstitucional, em primeiro lugar, por ferir o princípio da lesividade (art. 5º, caput, da Constituição Federal), pois se quer equiparar o ato de “chamar alguém de nazista, falsamente”, com o do crime de “apologia ao nazismo” – crime este de maior potencial ofensivo, previsto no § 1º, do art. 20, da lei nº 7.716/89, com a mesma pena de reclusão de dois a cinco anos e multa.
Atualmente, dependendo do calor do debate político, em que alguém chama outrem de nazista, há inclusive relevante doutrina que defende que tal conduta pode nem ser considerada crime, por inexistência de lesão a bem jurídico, ou, no máximo, ensejar a possível tipificação de crime contra a honra (calúnia, injúria e difamação, arts. 138/140, do CP), com pena de detenção de seis meses a dois anos e multa.
Em segundo lugar, a equiparação de um crime de menor potencial ofensivo, como o tipo previsto no referido projeto de lei, com a “apologia ao nazismo” – crime de maior potencial ofensivo -, também é inconstitucional por malferimento do princípio da individualização da pena, previsto no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, que garante ser a punição do condenado justa e proporcional ao crime cometido.
Em suma, o tipo penal previsto no projeto de lei em análise, equiparando “chamar, falsamente, alguém de nazista” ao crime de “apologia ao nazismo”, previsto no § 1º, do art. 20, da lei nº 7.716/ 89, que consiste em “fabricar, comercializar distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”, fere a Constituição Federal tanto no que concerne à tipificação de uma conduta (lesividade) quanto no que concerne à proporcionalidade da punição correspondente (individualização).
Importa acentuar que a “apologia ao nazismo” é um crime de ódio, com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa, entendendo-se por crime de ódio todo aquele que evidencia uma “motivação preconceituosa do infrator em face do pertencimento da vítima a determinado grupo social, geralmente baseado em preconceitos fundados na raça, nacionalidade, religião, gênero e orientação sexual”(3) O que significa dizer que há uma enorme distância entre inferiorizar alguém com base em preconceito(4) e identificar alguém, ainda que falsamente, como detentor de um discurso preconceituoso de superioridade, sobretudo quando quem é chamado de nazista não faz parte de uma minoria oprimida sob a perspectiva histórica.(5)
Ainda que se entenda que chamar alguém de nazista, falsamente, é conduta passível da caracterização de um crime, o projeto de lei em apreço também incorre em prejuízo aos princípios da economicidade e da unicidade legislativa, na medida em que já existe a possibilidade legal de penalização do agente por cometimento de crimes contra a honra, quais sejam, calúnia, injúria e difamação, pela via da ação penal privada.(6)
Sobre a discussão doutrinária que nega haver crime quando alguém é chamado, no debate político, ainda que falsamente, de nazista, importa trazer à lume a decisão do ministro Flávio Dino, na Petição nº 11.573-DF, julgamento ainda em andamento no Supremo Tribunal Federal. O caso em questão trata de oferecimento de queixa-crime contra a honra de parlamentar, que foi chamado de “fascista e nazista”, além de ter sido acusado de agressão contra alguns enfermeiros, conforme consta de vídeos propagados pelas redes sociais(7) . Segundo o ministro Flávio Dino:
“a palavra nazista, fascista, não possui o caráter de ofensa pessoal ao ponto de caracterizar calúnia, injúria e difamação. É uma corrente política estruturada na sociedade, no planeta. Basta examinar as eleições da Alemanha, em curso, em que há um partido que é formado basicamente por herdeiros dessa corrente política (nazista). [...] Portanto, entendo que a queixa deve ser recebida, em relação à agressão aos enfermeiros, porque a meu ver há um índice de gravidade que desborda muito da crítica política nazista, fascista, de extrema direita. [...] Considero que a ação penal deve prosseguir em relação à imputação de agressão aos enfermeiros e não deve ser recebida em relação a nazista, fascista etc., pois, aí sim, há a crítica política e não se configura na minha ótica a tipicidade necessária por não haver ânimo caluniante, injuriante e difamante.”(8)
Na Reclamação nº 48.723-SP, do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luís Roberto Barroso corrobora a ideia de que prevalece a liberdade de expressão, com caráter preferencial, na hipótese em que juiz de primeiro grau, no Estado de São Paulo, havia mandado o Twitter (atualmente X) apagar dois posts de jornalista que fez menção “à punição de nazistas.” Nessa Reclamação, ficou configurado que a liberdade de expressão só pode ser afastada em casos de mensagens com teor terrorista, pedófilo, de incitação ao crime e à violência, ameaças às instituições democráticas, discursos de ódio e o anticientificismo – negação da ciência – que coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas.
Assegura o ministro Luís Roberto Barroso que:
“[...] os discursos de ódio compreendem manifestações de intolerância ou desprezo motivadas por preconceito ligado à etnia, religião, deficiência física ou mental, identidade de gênero, orientação sexual etc. Partindo dessa premissa, as expressões “nazista” e “nazistinha”, ainda que consideradas ofensivas, não se amoldam ao conceito jurídico de discurso de ódio (...). É verdade, ainda, que as palavras dirigidas contra o ofendido constituem críticas ácidas que podem lhe causar desconforto pessoal. No entanto, a proteção desse tipo de conteúdo se justifica em perspectiva coletiva. Isso porque, para evitar a censura e preservar em máxima extensão as liberdades de expressão e de informação, os discursos mais contundentes, que presumidamente causarão as reações mais vigorosas em seus destinatários, são exatamente os que demandam tutela mais intensa pelo Poder Judiciário.(9)
Não é incomum, no debate político contemporâneo, afrontado por todo tipo de negacionismo, o debatedor de esquerda se dirigir a seu adversário de extrema-direita como “nazista ou fascista”, mormente quando se nega a gravidade das inúmeras desigualdades em sociedade, e não só as desigualdades socioeconômicas, mas também e sobretudo as que motivam as reivindicações de negros, mulheres, LGBTQI+, enfim, das pessoas socialmente mais vulneráveis.(10)
Deve-se dizer, ainda, que a decisão da Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara dos Deputados, de pautar a discussão do projeto de lei nº 254/2022, ocorre em detrimento ao projeto de lei nº 142/2023, que trata do crime de apologia ao nazismo e “altera a lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, para tipificar a fabricação, comercialização, distribuição ou veiculação de símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda, para fins de divulgação do nazismo ou do fascismo.”(11)
Embora a Comissão de Constituição e Justiça não tenha priorizado o trâmite do projeto de lei nº 142/2023(12), o crime de apologia ao nazismo está recorrentemente na pauta da mídia, a exemplo da operação que, há poucos dias, “apreendeu computadores e celulares de um grupo suspeito de praticar a apologia ao nazismo, em Maravilha, no Oeste de Santa Catarina.” O mais assustador dessa operação é a faixa etária dos envolvidos, que consiste em um grupo de adolescentes, cinco deles têm entre 16 e 17 anos e um, 18 anos.(13)
Ao invés de congressistas brasileiros se mobilizarem para impedir que “alguém seja chamado de nazista, injustamente”, a mobilização de que a sociedade necessita é para que se efetivem os direitos das minorias, porque foi “em razão do descontentamento da burguesia com o crescimento exponencial dos grupos denominados associais, ou seja, os desempregados, os mendigos, os ciganos, os homossexuais e os judeus,” que projetos do Führer, para o extermínio desses grupos, foram aceitos entusiasticamente pelas classes mais altas da sociedade alemã, violando todos os direitos humanos, e uma “série de medidas repressivas aniquilou os princípios liberais aptos a conter a força estatal.”(14)
(1) Angela Cristina Pelicioli, advogada, Doutora em Direito pela PUC-RS, Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa.
(2)Lei nº 7.716/89 - Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e m Angela Cristina Pelicioli, advogada, Doutora em Direito pela PUC-RS, Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. 2 Lei nº 7.716/89 - Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
(3)SOUZA, Regina Cirino Alves Ferreira de. Crimes de ódio. Racismo, feminicídio e homofobia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 53/54.
(4)ZAFFARONI, Eugenio Raul. Doutrina Penal Nazista. A dogmática penal alemã entre 1933 a 1945.Tradução e comentários: Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 47.
(5)Reclamação nº 48.723-SP, rel. min. Luís Roberto Barroso, julgamento em: 26/10/2021.
(6)Petição nº 9.094- DF, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em: 17/12/2020.
(7)Transcrição do Voto do ministro Flávio Dino na Petição nº 11.573-DF, rel. min. Cármen Lúcia, Primeira Turma do STF, julgamento em: 04/06/2024. (STF ao vivo).
(8)Transcrição do Voto do ministro Flávio Dino na Petição nº 11.573-DF, rel. min. Cármen Lúcia, Primeira Turma do STF, julgamento em: 04/06/2024. (STF ao vivo).
(9)Reclamação nº 48.723-SP, rel. min. Luís Roberto Barroso, julgamento em: 26/10/2021.
(10)PORTELLA Jr., José Carlos. “Chamar alguém da extrema-direita de “fascista” não configura crime contra a honra. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-17/chamar-alguem-de-extremadireita-de-fascista-nao-configura-crime-contra-a-honra/. Acesso em: 17/11/2024.
(11)Projeto de Lei nº 142/2023, da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2232271&filename=PL%2014 2/2023.
(12)Todos sabem que os “políticos podem redigir novas leis que, apesar de imparciais na aparência, são projetadas para prejudicar adversários.” O mesmo se pode dizer quando o Poder Legislativo pauta projeto de lei que se sabe inconstitucional em detrimento de outros projetos constitucionais e necessários para a sociedade. Por isso, é importante ficar atento para lidar com a guerra jurídica que corresponde “ao uso de instituições legais com o objetivo de atingir oponentes políticos.” (LEVITSKY, Steven e ZIBLATT, Daniel. Como salvar a democracia. Tradução Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p.63.)
(13)Grupo que inclui adolescentes é investigado por suspeita de apologia ao nazismo no Oeste de SC. Celulares e computadores foram apreendidos em Maravilha. Segundo polícia, grupo investigado tem 6 integrantes, 5 deles com 16 e 17 anos e um com 18. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santacatarina/noticia/2024/11/14/grupo-adolescentes-suspeita-apologia-nazismo.ghtml. Acesso em: 18/11/2024.
(14)SOUZA, Regina Cirino Alves Ferreira de. Crimes de ódio. Ibid, p. 46.
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