Por Maria Elisa Máximo*
O PL 2630 entra hoje em votação na Câmara de Deputados, em Brasília, após consulta pública e amplo apoio de jornalistas, veículos de imprensa, artistas e intelectuais que produzem conteúdo para redes sociais. O texto a seguir é a contribuição do HumanizaSC para esse debate tão urgente em nossa sociedade.
O Movimento HumanizaSC surgiu da urgência de se combater com veemência os discursos de ódio e as violências políticas que se espraiam especialmente em nosso Estado, com ações mais ou menos organizadas de indivíduos e de grupos extremistas, muitas vezes sustentados por flagrante identificação neonazista. O legado deixado pelo governo de Jair Bolsonaro que, como todos sabemos, autorizava tacitamente o rechaço e a perseguição pública de seus opositores e a manutenção de redes de desinformação em favor de seus interesses, acumula, mesmo após sua derrota nas eleições de 2022, as cenas vistas no dia 8 de janeiro, que resultaram na depredação das sedes dos três poderes em Brasília; boicotes, demissões e até mesmo a cassação de profissionais e políticos/as alinhados com a esquerda etc. E tudo isso ocorre privilegiadamente pelas redes digitais, com a colaboração ou, no mínimo, com a conivência de plataformas cujos algoritmos estão longe de serem “neutros” e, muito pelo contrário, carregam as ideologias e os interesses das big techs que os mantêm.
É inegável que, atualmente, as redes digitais constituem-se como agentes políticos relevantes, capazes de definir processos e seus desdobramentos. Como sugere Evgeny Morozov (2018, p. 11), uma das vozes mais importantes para pensar o papel das tecnologias hoje, o modelo de negócios das big techs concebidas a partir do Vale do Silício funciona de modo a tornar irrelevante se as mensagens disseminadas são verdadeiras ou falsas: o importante é que elas viralizem, pois é justamente pelos dados depurados do engajamento (cliques, curtidas, compartilhamentos) que as essas empresas produzem seus lucros aviltantes.
O professor e pesquisador Sérgio Amadeu de Oliveira, um dos maiores especialistas em internet no Brasil, há tempos vem chamando a atenção para a urgência da regulação da ação dos algoritmos para a manutenção das democracias. Para Amadeu, as sociedades democráticas precisam avançar na compreensão das implicações dos algoritmos para, assim, buscar os melhores modos de regular essas tecnologias que, segundo suas próprias palavras, “começaram a regular nosso comportamento e nossa relação com o Estado”. Contudo, prossegue o autor, as democracias não convivem bem como a opacidade. A grande questão – e o grande desafio – é como regular e fiscalizar algo cujo funcionamento não é transparente e está envolto em sigilos. (OLIVEIRA, 6/12/2018 online)
É nesse contexto complexo e multifacetado que se apresenta o Projeto de Lei 2630, apelidado inicialmente de PL das Fake News, mas que no curso do debate se amplia e se constitui como Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Apresentada originalmente pelo senador Alessandro Vieira, do Cidadania/SE, o projeto de lei tem como objetivo principal responsabilizar provedores de internet e plataformas digitais pelo combate à desinformação e, consequentemente, pelo aumento da transparência na internet em relação aos conteúdos patrocinados e à atuação do poder público. Deve-se destacar que o texto inicial do PL foi protocolado em um momento – o primeiro ano da pandemia de Covid-19 – onde a rede de desinformação em torno da doença, seus possíveis tratamentos ou formas de evitá-la foi altamente mobilizada, fazendo das fake news moeda valiosa nas mãos daqueles que, negando a gravidade da pandemia, buscavam não diminuir lucros em face das medidas de enfrentamento (que incluíram lockdowns ou protocolos de distanciamento social) ou aumentá-los, vendendo medicamentos milagrosos que prometiam curar ou até evitar a contaminação pela doença. Não por acaso, a internet é, hoje, responsável por mais de 50% da compra de mídia no mercado publicitário (Meio e Mensagem, 2023) e as fake news são, sem dúvida, as notícias mais lucrativas.
Diante disso, quais são as principais diretrizes estabelecidas pela PL 2630?
Evitar ou desestimular o abuso e manipulação das redes sociais e serviços de mensagens privadas com mais de 2 milhões de usuários, estabelecendo normas e mecanismos de transparência para a sua operação.
Respeitando os princípios e garantias já previstos nas Leis n. 12.965/2014 – Marco Civil da Internet – e n. 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais -, a lei objetiva combater a desinformação e fomentar a diversidade de informações; garantir maior transparência sobre conteúdos pagos e disponibilizados aos usuários; desencorajar o uso de contas não autênticas para a disseminação de desinformação.
Vedar contas inautênticas, redes de disseminação artificial, conteúdos patrocinados não rotulados, sem que isso implique em “restrição ao livre desenvolvimento da personalidade individual, à manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação individual e coletiva” garantida no Art. 5º da Constituição Federal de 1988.
Para a garantia da transparência, a lei prevê a publicização dos dados dos provedores através de relatórios produzidos com base em critérios definidos nos termos da lei; a identificação de conteúdos verificados como desinformação; a disponibilização de dados relacionados a conteúdos patrocinados. Esses dados devem constar em relatórios trimestrais e, durante os períodos eleitorais, em relatórios semanais.
Indicar aos provedores um conjunto de “boas práticas” para evitar e combater a desinformação, o que inclui verificar procedência de informações com ênfase em fatos independentes; rotular conteúdo desinformativo; desabilitar recursos de transmissão de conteúdo desinformativo para mais de um usuário por vez; interromper a promoção paga ou promoção gratuita artificial de conteúdos desinformativos; assegurar o envio e o alcance da informação verificada sempre que algum conteúdo falso ou desinformativo chegar aos usuários.
Estabelecer que os provedores forneçam, aos seus usuários em períodos predefinidos, históricos de conteúdos patrocinados visualizados. Além disso, a lei estabelece algumas normas para a rotulação dos conteúdos patrocinados, de modo a ampliar o esclarecimento dos seus usuários.
Por fim, o PL tem como objetivo estabelecer as diretrizes para a atuação do poder público na aplicação da lei, nas sanções mediante seu descumprimento e, igualmente importante, na sua função educativa em todos os níveis para o uso consciente e responsável da internet.
Destacamos, aqui, apenas alguns pontos centrais e, diante do exposto, entendemos que o PL 2630 surge como um dispositivo complementar fundamental para limitar a ação capilarizada e de difícil controle das plataformas digitais na disseminação de notícias falsas e, também, de conteúdos de ódio que miram segmentos específicos da população brasileira. Para tocar em uma das pautas mais sensíveis do movimento HumanizaSC nesse momento, os ataques às escolas que nos chocaram no mês de março foram e seguem sendo orquestrados em grupos organizados pela internet com forte abordagem armamentista, masculinista, supremacista e, mais abrangentemente, neonazista.
Curiosamente, os setores que, hoje, erguem bandeiras contrárias a aprovação do PL compreendendo-a como um dispositivo de censura são os mesmos que reivindicam para si a “liberdade” de disseminarem notícias falsas, perseguirem opositores, promoverem armas em nome de um direito ilimitado à “legítima defesa”, praticarem linchamentos públicos, atuarem em grupos neonazistas organizados na e fora da internet longe dos olhos do Estado e seus mecanismos reguladores. São também esses mesmos grupos que, principalmente nos últimos quatro anos, rechaçaram a atuação da imprensa, deslegitimaram a atuação das agências de fact checking, rotularam como “censura” a desmonetização de canais e perfis disseminadores de fake news e que usaram das redes sociais e aplicativos de mensagens privadas para organizar e promover o golpe de 8 de janeiro, uma das mais graves afrontas à democracia brasileira já vista em nossa história recente.
As big techs também mostram seu incômodo com mais esse passo regulatório. Na manhã de hoje, ninguém mais do que a gigante Google lançou uma ofensiva contra o projeto: na sua página de entrada, um link remetia para uma espécie de texto editorial da empresa, intitulado “O PL das Fake News pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil”. Após forte repercussão negativa que, em resumo, apontava para o interesse que uma empresa como o Google demonstra na manutenção de um ambiente permissivo às lucrativas fake news -, o link e o texto foram retirados do ar.
Por tudo isso, o coração da PL 2630 pulsa em questões e demandas que são caras e urgentes para o movimento HumanizaSC, que se posiciona favorável à sua aprovação. Contudo, dada a complexidade do tema e do cenário no qual ele se circunscreve, entendemos também que a desejável aprovação da Lei não pode interromper o debate acerca das diferentes facetas da regulação das mídias digitais no Brasil. No último dia 30 de abril, Sérgio Amadeu defendeu, em seu perfil no Twitter, que a efetividade da lei carece da criação ou definição de um órgão regulador que fiscalize a aplicação das normas e mecanismos por ela previstos, sob o risco de, ao contrário do que se deseja, ampliarem-se os poderes das big techs. Desde 2020, o texto do PL sofreu várias modificações, atendendo a demandas de diferentes setores e forças políticas, o que é positivo se compreendermos que ele deve contemplar a maioria da sociedade. Por outro lado, faz-se importante a definição mais clara dos conceitos de fake news e discursos de ódio, sem que isso fique à mercê da auto regulação das empresas. Por fim, reforçamos a importância de uma lei que atue na garantia da liberdade, responsabilidade e transparência nas redes como direitos e deveres de todas as cidadãs e cidadãos, algo que finalmente está sendo ponto de debate e ação séria e comprometida por parte do Estado brasileiro.
*Texto de autoria da professora, antropóloga e pesquisadora de temas relacionados à internet, Drª Maria Elisa Máximo.
Referências
MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
SACCHITIELLO, Bárbara. Cenp-Meios: mercado publicitário brasileiro cresceu 7,7% em 2022. Meio & Mensagem, 9/03/2023. Disponível em: https://www.meioemensagem.com.br/midia/cenp-meios-mercado-publicitario-brasileiro-cresceu-76-em-2022
AMADEU DA SILVEIRA, Sérgio. Regulação algorítmica e os estados democráticos. ComCiência: revista eletrônica de jornalismo científico. Dossiê 204, dez 2018 – fev 2019. Disponível em: https://www.comciencia.br/regulacao-algoritmica-e-os-estados-democraticos/
Sérgio Amadeu. Twitter: @samadeu. 30/04/2023.
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